segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Conto de Horror | A Cabeça Errante

Recentemente, uma livraria da minha cidade abriu um concurso de contos de horror, visando promover o estabelecimento. O prêmio para o melhor conto seria um box com os sete livros d'A Torre Negra, de Stephen King. Instigado pela competição e pelo brinde, resolvi escrever uma historinha de terror. Me baseei numa desconhecida lenda, a da "Cabeça Errante", ou "Cabeça Satânica". Há alguns meses estava procurando um mote para escrever um roteiro de terror ´para curta-metragem e me deparei com essa lenda, mas aí esqueci e deixei pra lá. Até que me veio a ideia para este texto.

Não ganhei os livros. Não tem problema. Faz parte, já diria Kleber Bambam. Então resolvi postar o escrito aqui, só pra que ele não morra no meu HD sem ter sido lido por quase ninguém. Na verdade, acho que daria um bom curta de Terror B. Ainda o farei.

Apaguem a luzes e leiam!
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Por Jaime "Netão"  Guimarães

O ano não é exato, mas o caso aconteceu por volta de 1933. Era entardecer de uma sexta-feira, em uma pequena propriedade localizada no sítio Carcará, em uma pequena cidade longínqua na divisa entre Paraíba e Ceará. O dono da terra, José Firmino, um agricultor de meia idade, havia passado a tarde toda rezando, junto com seu filho Clemencio, um jovem de 25 anos. Na propriedade havia dois túmulos, onde estavam enterrados outro filho e  a esposa de José. Assustados, eles se preparavam para algo de ruim. Era noite de lua cheia, e eles sabiam que algo estaria rondando aquelas terras. Na porteira que dava entrada para a terra dos Firmino, José colocou uma grossa corrente enferrujada, presa por uma espécie de cadeado antigo. Não queria que nada passasse por ali. Também colocou uma mistura de sal e algumas ervas em toda a extensão de passagem da porteira. Já estava anoitecendo, o vento começava a sopra frio, e só se escutava ao longe o canto de seriemas, grilos e quero-queros. Com a escuridão da noite chegando, José e seu filho refugiaram-se dentro de sua casa.

Longe dali algo se aproximava com rapidez. Vinha embolando pelo chão, como se fosse uma roda de carro desenfreada. Por onde passava, assustava animais e deixava um silêncio moribundo. O sol jazia e a lua começava a emergir.

José e Clemencio haviam trancado todas as portas e janelas, e colocado o sal e as ervas em todas as passagens da casa. A essa altura já era noite completa, o breu tomava conta do sítio. Estavam a, pelo menos, duas léguas de distância de qualquer alma viva da região. A única iluminação da casa eram dois lampiões, que queimavam querosene. A luz fraca iluminava o pobre casebre, de velhas portas de madeira e paredes grossas. Avistava-se em uma parede um retrato de família, de quando José era mais jovem, e nele observava-se sua esposa e mais dois meninos. Daquela foto só o patriarca e seu primogênito ainda estavam vivos. Havia quadros religiosos espalhados pelo local. Os homens estavam com terços em mãos, assim como dois facões. Estavam prevendo que o mau agouro chegaria até eles.

A infame forma se aproximava ainda mais do sítio. Ganhara velocidade e força tamanhas, que ao chocar-se com a porteira, havia despedaçado a corrente e adentrado a moradia da família Firmino. Aquela massa, até então identificável, reduzira sua velocidade, passara por cima dos túmulos e chegara, enfim, à frente da porta da casa. Sobressaltados, os dois homens se entreolharam, sabendo do que havia se aproximado. Olharam pelas brechas da porta e puderam contemplar. Tratava-se de uma cabeça. Sim, uma cabeça desprovida de um corpo. Ela estava jogada no chão, e espantosamente respirava. Respirava tão forte que fazia barulho, que levantava um pouco de poeira do chão de terra batida. Seus olhos eram totalmente brancos, o cabelo era negro e de tamanho médio, estava sujo. As bochechas, testa e nariz estavam com cortes e arranhões. Os dentes eram amarelados e enegrecidos. A língua estava preta. A cabeça então abriu a boca e começou a dar terríveis urros e gargalhadas. Aquilo, que parecia ter sido arrancado do corpo de uma mulher, era assustador como ver o próprio diabo em pessoa. As únicas palavras que, inexplicavelmente saíram daquela boca sem garganta foram “Vim tomar o que é meu”.

A cabeça errante começou a circular a casa. Gritava, ria e repetia “Vim tomar o que é meu. Vim tomar o que é meu", com uma voz quase gutural. Dentro da casa, José e Clemencio corriam de porta em porta, de janela em janela, para ver onde aquela cabeça demoníaca estava. Só viam o vulto dela passando rápido pelas brechas. Começaram então a rezar mais alta, pedindo ajuda de deuses e santos. Foi quando, como por um milagre, o barulho vindo da cabeça cessou. O silêncio se fez na casa. Pai e filho ainda estavam atentos, com medo. Ao primeiro sinal de calmaria de José, um barulho estrondoso veio do teto. Sim, a cabeça estava em cima da casa, ela bateu até que algumas telhas quebraram. Aquele emissário das trevas havia caído dentro do último refúgio, para desespero de José e seu filho. A cabeça então começou a correr e gritar por dentro da pequena casa. Um dos lampiões se apagou, deixando o lugar ainda mais escuro. José e Clemencio se separaram. Não tinha mais para quem rezar, o que podiam fazer era atacar e tentar acabar com o diabo que os afligia. A dupla começou a atacar à esmo, no breu, sem enxergar quase nada. A luz do lampião diminuía a cada segundo. Foi quando tudo ficou em completa escuridão e silêncio.

José gritava por Clemencio e não tinha resposta. Da escuridão um cochichado surgiu, como se alguém falasse em voz baixa. O pai então retirou fósforos de seu bolso e acendeu um dos lampiões que haviam apagado. Quando a luz votou ele viu que em um canto da casa, na penumbra, Clemencio segurava a cabeça pelos cabelos, e  que ela sussurrava algo para seu filho, no pé do ouvido. O filho estava com os olhos arregalados. A cabeça errante ria baixo. Seu pai começou a gritar, dizendo que ele segurasse o demônio, e que ali mesmo acabariam com aquela agonia. Porém, Clemencio não parecia ter reação. Após isso, a cabeça aparentava estar morta. Seu espírito encarnara em Clemencio. O filho soltou aquela massa infame no chão. José mais uma vez tomado pelo desespero. Ele gritava e começou a chorar. Seu filho, possuído, pegou o facão e começou a atacar o próprio pescoço. No primeiro golpe um grande ferimento já se abriu, mas Clemencio agora ria  e gritava. O corpo parecia se mexer mesmo que aquilo não fizesse sentido. Ele continuou atacando o próprio pescoço, até que a cabeça foi arrancada.

José parecia não acreditar no que estava vendo. O corpo de Clemencio estava decapitado, mas em pé. Em uma das mãos estava o facão, em outra a sua própria cabeça, que estava ainda viva, sorrindo e grunhindo. Após o corpo soltar a cabeça, caiu e já estava sem vida. Aquele terrível demônio agora habitava outro crânio. Ele foi embora, seus gritos e risadas ecoavam pela noite e se distanciavam. Na casa, José estava inconsolado, caído no chão. Ali mesmo ele adormeceu.

O sol nasceu e pôde-se ter noção no cenário de horror, a casa estava ensanguentada, o corpo de Clemencio estava ali jogado, as moscas estavam em cima. José acordou, ao olhar para o lado viu a cabeça que começara o ataque naquela noite. Era o mesmo rosto visto no retrato na parede, o da sua esposa.
Fim

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