Recentemente, uma livraria da minha cidade abriu um concurso de contos de horror, visando promover o estabelecimento. O prêmio para o melhor conto seria um box com os sete livros d'A Torre Negra, de Stephen King. Instigado pela competição e pelo brinde, resolvi escrever uma historinha de terror. Me baseei numa desconhecida lenda, a da "Cabeça Errante", ou "Cabeça Satânica". Há alguns meses estava procurando um mote para escrever um roteiro de terror ´para curta-metragem e me deparei com essa lenda, mas aí esqueci e deixei pra lá. Até que me veio a ideia para este texto.
Não ganhei os livros. Não tem problema. Faz parte, já diria Kleber Bambam. Então resolvi postar o escrito aqui, só pra que ele não morra no meu HD sem ter sido lido por quase ninguém. Na verdade, acho que daria um bom curta de Terror B. Ainda o farei.
Apaguem a luzes e leiam!
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Por Jaime "Netão" Guimarães
O
ano não é exato, mas o caso aconteceu por volta de 1933. Era entardecer de uma
sexta-feira, em uma pequena propriedade localizada no sítio Carcará, em uma
pequena cidade longínqua na divisa entre Paraíba e Ceará. O dono da terra, José
Firmino, um agricultor de meia idade, havia passado a tarde toda rezando, junto
com seu filho Clemencio, um jovem de 25 anos. Na propriedade havia dois
túmulos, onde estavam enterrados outro filho e a esposa de José. Assustados, eles se
preparavam para algo de ruim. Era noite de lua cheia, e eles sabiam que algo
estaria rondando aquelas terras. Na porteira que dava entrada para a terra dos
Firmino, José colocou uma grossa corrente enferrujada, presa por uma espécie de
cadeado antigo. Não queria que nada passasse por ali. Também colocou uma
mistura de sal e algumas ervas em toda a extensão de passagem da porteira. Já
estava anoitecendo, o vento começava a sopra frio, e só se escutava ao longe o
canto de seriemas, grilos e quero-queros. Com a escuridão da noite chegando,
José e seu filho refugiaram-se dentro de sua casa.
Longe
dali algo se aproximava com rapidez. Vinha embolando pelo chão, como se fosse
uma roda de carro desenfreada. Por onde passava, assustava animais e deixava um
silêncio moribundo. O sol jazia e a lua começava a emergir.
José
e Clemencio haviam trancado todas as portas e janelas, e colocado o sal e as
ervas em todas as passagens da casa. A essa altura já era noite completa, o
breu tomava conta do sítio. Estavam a, pelo menos, duas léguas de distância de
qualquer alma viva da região. A única iluminação da casa eram dois lampiões,
que queimavam querosene. A luz fraca iluminava o pobre casebre, de velhas
portas de madeira e paredes grossas. Avistava-se em uma parede um retrato de
família, de quando José era mais jovem, e nele observava-se sua esposa e mais dois
meninos. Daquela foto só o patriarca e seu primogênito ainda estavam vivos.
Havia quadros religiosos espalhados pelo local. Os homens estavam com terços em
mãos, assim como dois facões. Estavam prevendo que o mau agouro chegaria até
eles.
A
infame forma se aproximava ainda mais do sítio. Ganhara velocidade e força
tamanhas, que ao chocar-se com a porteira, havia despedaçado a corrente e
adentrado a moradia da família Firmino. Aquela massa, até então identificável,
reduzira sua velocidade, passara por cima dos túmulos e chegara, enfim, à
frente da porta da casa. Sobressaltados, os dois homens se entreolharam,
sabendo do que havia se aproximado. Olharam pelas brechas da porta e puderam
contemplar. Tratava-se de uma cabeça. Sim, uma cabeça desprovida de um corpo.
Ela estava jogada no chão, e espantosamente respirava. Respirava tão forte que
fazia barulho, que levantava um pouco de poeira do chão de terra batida. Seus
olhos eram totalmente brancos, o cabelo era negro e de tamanho médio, estava
sujo. As bochechas, testa e nariz estavam com cortes e arranhões. Os dentes
eram amarelados e enegrecidos. A língua estava preta. A cabeça então abriu a
boca e começou a dar terríveis urros e gargalhadas. Aquilo, que parecia ter
sido arrancado do corpo de uma mulher, era assustador como ver o próprio diabo
em pessoa. As únicas palavras que, inexplicavelmente saíram daquela boca sem
garganta foram “Vim tomar o que é meu”.
A
cabeça errante começou a circular a casa. Gritava, ria e repetia “Vim tomar o
que é meu. Vim tomar o que é meu", com uma voz quase gutural. Dentro da
casa, José e Clemencio corriam de porta em porta, de janela em janela, para ver
onde aquela cabeça demoníaca estava. Só viam o vulto dela passando rápido pelas
brechas. Começaram então a rezar mais alta, pedindo ajuda de deuses e santos.
Foi quando, como por um milagre, o barulho vindo da cabeça cessou. O silêncio
se fez na casa. Pai e filho ainda estavam atentos, com medo. Ao primeiro sinal
de calmaria de José, um barulho estrondoso veio do teto. Sim, a cabeça estava
em cima da casa, ela bateu até que algumas telhas quebraram. Aquele emissário das
trevas havia caído dentro do último refúgio, para desespero de José e seu filho.
A cabeça então começou a correr e gritar por dentro da pequena casa. Um dos
lampiões se apagou, deixando o lugar ainda mais escuro. José e Clemencio se
separaram. Não tinha mais para quem rezar, o que podiam fazer era atacar e
tentar acabar com o diabo que os afligia. A dupla começou a atacar à esmo, no
breu, sem enxergar quase nada. A luz do lampião diminuía a cada segundo. Foi
quando tudo ficou em completa escuridão e silêncio.
José
gritava por Clemencio e não tinha resposta. Da escuridão um cochichado surgiu,
como se alguém falasse em voz baixa. O pai então retirou fósforos de seu bolso
e acendeu um dos lampiões que haviam apagado. Quando a luz votou ele viu que em
um canto da casa, na penumbra, Clemencio segurava a cabeça pelos cabelos, e que ela sussurrava algo para seu filho, no pé
do ouvido. O filho estava com os olhos arregalados. A cabeça errante ria baixo.
Seu pai começou a gritar, dizendo que ele segurasse o demônio, e que ali mesmo
acabariam com aquela agonia. Porém, Clemencio não parecia ter reação. Após
isso, a cabeça aparentava estar morta. Seu espírito encarnara em Clemencio. O
filho soltou aquela massa infame no chão. José mais uma vez tomado pelo
desespero. Ele gritava e começou a chorar. Seu filho, possuído, pegou o facão e
começou a atacar o próprio pescoço. No primeiro golpe um grande ferimento já se
abriu, mas Clemencio agora ria e
gritava. O corpo parecia se mexer mesmo que aquilo não fizesse sentido. Ele
continuou atacando o próprio pescoço, até que a cabeça foi arrancada.
José
parecia não acreditar no que estava vendo. O corpo de Clemencio estava
decapitado, mas em pé. Em uma das mãos estava o facão, em outra a sua própria
cabeça, que estava ainda viva, sorrindo e grunhindo. Após o corpo soltar a
cabeça, caiu e já estava sem vida. Aquele terrível demônio agora habitava outro
crânio. Ele foi embora, seus gritos e risadas ecoavam pela noite e se
distanciavam. Na casa, José estava inconsolado, caído no chão. Ali mesmo ele
adormeceu.
O
sol nasceu e pôde-se ter noção no cenário de horror, a casa estava
ensanguentada, o corpo de Clemencio estava ali jogado, as moscas estavam em
cima. José acordou, ao olhar para o lado viu a cabeça que começara o ataque
naquela noite. Era o mesmo rosto visto no retrato na parede, o da sua esposa.
Fim
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